Por Malu Fontes.
A televisão adora uma tragédia e mais ainda transformá-la em melodrama. Nesta época do ano, juntando-se os fatos estarrecedores que nunca param de acontecer aqui e no mundo ao espírito de porco daqueles que mal podem esperar o Natal para levar a alma a uma lavanderia de consciências sujinhas, tem-se a receita ideal para os corvos existentes tanto do lado de cá da tela da TV quanto dentro dela. Pródiga em tragédias, a realidade brasileira deu neste Natal um combustível e tanto para os corvos televisivos: o drama do menino cujo padrasto, o tipo mais lombrosiano visto na TV nos últimos tempos, enfiou-lhe dezenas de agulhas. Apelidado dramaticamente por segmentos da imprensa baiana de ‘o soldado Márcio’, pode-se dizer que o menino e seu drama não foram objeto de cobertura por parte do telejornalismo, mas de uma transmissão quase ininterrupta.
Transmite-se tudo. Repórteres gravam na brinquedoteca do hospital com informações imprescindíveis: ali é o lugar onde a mãe do menino vai várias vezes por dia pegar um carrinho. Narra-se que dezenas de pessoas já fizeram romaria ao hospital para deixar presentes. Mostra-se um berço hospitalar vazio e ao lado uma poltrona e explica-se para o telespectador demente que o garotinho, todo o tempo assim, no diminutivo, está numa UTI pediátrica num berço exatamente igual àquele mostrado pela repórter. E que a mãe fica o tempo inteiro numa poltrona amarela também igual àquela.
LAVANDERIA – O caso Márcio é um dos mais chocantes entre os registrados na TV contra a fragilidade de uma criança. Entretanto, no espírito natalino dos corvos desbotados da TV, a exposição e a exploração de histórias tristes de crianças e jovens são uma constante. Se as estrelas da TV, tão boazinhas e dadivosas que são, tão promotoras de transformações miraculosas na vida de crianças muitas vezes não apenas pobres, mas com síndromes raras ou doenças irreversíveis, por que, para ajudá-las, precisam expô-las tão explicitamente? Em casa, o telespectador que não resiste a uma lavanderia de consciências, incluindo a própria, regozija-se jubiloso com o espírito natalino e cristão de Xuxa ao vê-la realizando um sonho (conhecê-la, claro) de um menino com paralisia cerebral, diante de câmeras, com trilha sonora e produtos licenciados por ela.
Do mesmo naipe é a exploração da desgraça alheia promovida por Ana Maria Braga. Há dias ela está prostrada em sua lavanderia de almas sebosas contando em detalhes a vida de uma adolescente de 14 anos viciada em crack e moradora embaixo de um viaduto. O recado de ambas é o mesmo: a tia corva ajuda a todos os desventurados, desde que suas tragédias possam ser transmitidas em todas as etapas, seguidas por câmeras e pela cumplicidade de morcego de quem não vive sem consumir a tragédia dos outros e só dorme sossegado porque as estrelas da TV realizam a tarefa nobre de embalar em formato de audiência as vidas miseráveis dos que têm a ‘sorte’ de cair em suas garras. E quem quiser que pense que, na essência, quadros como o Dia de Princesa de Netinho de Paula tem alguma diferença se comparado à abordagem da família da menina do viaduto, agora todinha numa clínica de dependentes químicos. Tanto as princesas negras quanto os moradores do viaduto do Mais Você são covers de Pixotes com validade de um turno, ao invés de imortalizados num filme.
VACAS – Ou alguém acha que a família do viaduto, depois de encerrado o reality show de sua miséria, vai ser socialmente incluída e vai trabalhar com carteira assinada na fazenda onde Ana Maria Braga cria bois e vacas mauricinhos e patricinhas que cruzam, nos leilões noticiados na Caras, com os amiguinhos bovinos igualmente bem nascidos nos currais de Regina Duarte, Daniela Zurita e dos Sangalo? Sim, o sexo bovino tornou-se um negócio lucrativíssimo entre as celebridades. Passado o reality show curtinho dos desventurados, as princesas paupérrimas, as crianças com paralisia cerebral e as famílias dos viadutos voltarão aos seus borralhos.
Neste contexto, merece aplausos a idéia dos Correios de atuar apenas como intermediários em um processo em que somente pessoas com alguma motivação para além das câmeras vão às agências adotar cartas reais de crianças a Papai Noel, sem sensacionalismo do tipo ‘vinde a mim os miseráveis sem Natal’. No projeto de adoção de cartas, a televisão tem um papel fundamental, o de contribuir para publicizar a existência da iniciativa e, assim, fazer com que aqueles que não saberiam de sua existência possam descobri-la e multiplicar o número de participantes. Excepcionalmente, em casos como esse, a TV foge à regra e não se torna a dona das histórias trágicas, novelizando a vida dos pobres com o intuito de transformá-la em audiência vendável e metamorfosear corvos midiáticos em almas caridosas.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 27 de Dezembro de 2009. [email protected]

Uma resposta
O artigo que você escreveu é bastante oportuno. Veio em um momento em as pessoas preferem mais o ter do que o ser. Voce mexeu no queijo de muita gente, que nesse pais não vê o mundo como uma coisa que estamos apenas como falava meu velho pai. “passando uma chuva” e preferem viverdas aparencia. você foi dura com todos os xuxas e os duartes e os ana marias da vida.