BLOG DO GUSMÃO

TELEANÁLISE: CUIDADO COM O BALANÇO DO DIA

Por Malu Fontes.

Sobre a fragilidade da existência humana, o arquiteto Oscar Niemeyer, aos 102 anos, disse, de forma singular: a vida é um sopro. De modo tão poético quanto o do papa da arquitetura brasileira, mas de forma ainda mais desconcertante, como se espera daqueles que experimentam hoje um outro tipo de desencantamento do mundo, a banda baiana Cascadura adverte em uma de suas canções: ‘muito cuidado com o balanço do dia/qualquer coisinha, já não estamos aqui’. Essas duas perspectivas sobre o quanto a vida é efêmera, transitória e fugaz, não apenas pela sua própria natureza, mas por conta das contingências do mundo contemporâneo e dos surtos ininterruptos de violência, como ocorre no Brasil, são ilustradas, diariamente, em todas as emissoras de TV, em quaisquer telejornais.

A paisagem urbana e também televisiva, sobretudo nessa época do ano, é predominantemente publicitária e festiva. Uma profusão de gente (in)feliz e de mercadorias sedutoras buscando-se ávidas entre si, por conta do espírito de natal, do décimo-terceiro, do clima de Ano Novo, da chegada do verão, da proximidade do Carnaval. Todos fazem de conta que a normalidade dá o tom das rotinas de cada dia, mas qualquer cidadão brasileiro de bom senso sabe, mesmo sem querer saber, que qualquer nesguinha de alegria depende mesmo e tão somente é da sorte de o balanço do dia permitir.

SUJO E MAL LAVADO – Assassinatos no trânsito eternamente impunes; mortes em série cometidas por garotos saídos de uma cultura de barbárie radical se comparada aos bárbaros medievais; adultos jovens assassinados no bar da eqüina porque não se comportaram como ordenava a cartilha covarde e insana da violência; trabalhadores pobres sem escolha sendo mortos ou enxotados de suas casas só porque têm o azar de morar no bairro cujo traficante dono do pedaço acordou aborrecido; jovem esquartejado em pedacinhos nas quebradas do Bairro da Paz como um mero recado dos donos do lugar a todos que não honram seus compromissos com o tráfico.

Um integrante da Aeronáutica na Bahia acha pouco comprar carro roubado na Feira do Rolo e sai por aí, mais a torto que a direito enfiando-o contra passeios e muros e assassinando praticamente uma família inteira. A Polícia Militar ajuda-o na fuga. Nenhum militar, estadual ou federal, disse palavra sobre o assunto. Em São Paulo, o segurança de uma padaria não gosta dos vizinhos ricos, chama as meninas de galinhas, irmão vai queixar-se ao dono do estabelecimento e é morto como um bode num ritual de matadouro, com uma faca enfiada na barriga, no meio da rua. Na fronteira do Brasil com o Suriname, numa terra de ninguém de fato e de direito, brasileiros que nunca foram gente, nem aqui, nem lá, são dilacerados a golpes de facão, incluindo estupros em série, por quilombolas surinameses. O sujo solapando o mal lavado. O miserável excluído querendo varrer do mundo seus concorrentes de desventura.

OS BONDES – Risíveis é o máximo que se pode dizer das falas pausadas e corretas da diplomacia nacional, chamando os enxotados da lama dos garimpos do Suriname de cidadãos brasileiros e anunciando que estes terão todo o apoio do governo brasileiro. Ah, tá. Tanto apoio sempre tiveram no Brasil que daqui saíram como ratos, avançando sorrateira e clandestinamente sobre os pântanos inabitáveis das periferias do mundo e dos quintais alheios, de onde agora são tangidos a golpes de facão e do argumento bárbaro do estupro seriado.

Essas são apenas reles amostras, todas noticiadas na semana pela TV, do quanto a vida de cada um, independentemente de sua classe social e da localização geográfica, é mesmo um sopro, extinguível a qualquer balanço dos dias contemporâneos. Enquanto isso, os mais remediados fingem que consideram violência toda e qualquer atitude contra a vida de quem quer que seja. É mentira. Ao menino esquartejado no Bairro da Paz, aos trabalhadores ferrados assassinados na chacina de Periperi não será dada, jamais, por parte da cidade civilizada, a mesma condição de vítima da violência atribuída ao rapaz assassinado em um Bar do Horto Florestal. E aí está parte da explicação para a continuidade da insegurança difusa e constante que é viver sem saber quando e de onde virá o balanço que porá fim ao sopro que é a vida nossa de cada dia. Enquanto a condição de pobre ou de suposto ‘envolvido’ fizerem uma vida do Bairro da Paz ou de Periperi valer milhares de vezes menos que a vida de uma vítima melhor nascida, tudo continuará ribanceira abaixo nessa ladeira escorregadia. E durma-se com tanta gente feliz desejando feliz ano novo e mandando todos irem ao shopping. Se for, Madame, cuidado com os bondes.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Publicado em 03 de janeiro de 2010 no jornal A Tarde.

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