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CLÓVIS CALDEIRA E O ABSENTEÍSMO CACAUEIRO DO SUL DA BAHIA

Imagem do livro de Clóvis Caldeira (arquivo da família).
Imagem do livro de Clóvis Caldeira (arquivo da família).

Por Elisabeth Zorgetz

Elisabeth ZorgetzMuito antes de expor esta análise, considerei o constrangimento que poderia provocar, em matéria familiar, social e intelectual. Sua proposta, no entanto, tem se mostrado cada dia mais oportuna, em sua necessidade de análise no campo econômico e político da nossa região. Aqui, mais uma vez, a história reafirma sua responsabilidade universal em voltarmos a face ao passado,e o nosso dever, enquanto atores históricos, de coletarmos os ecos da memória para se façam ouvir.

Clóvis Caldeira nasceu 1908 em Alagoinhas-Ba, filho de comerciantes, e se mudou, fugido, muito jovem para o Rio de Janeiro, onde trabalhou em gráficas e jornais em condições insalubres até se tornar funcionário do IBGE, anos mais tarde, elaborando vários trabalhos censitários e socioeconômicos para o Serviço de Informação Agrícola. Filiado ao Partido Comunista e amigo pessoal de Graciliano Ramos e Eneida de Moraes, Clóvis escreveu as maiores secções sobre a agronomia brasileira para as enciclopédias da época e foi duramente perseguido e torturado pela polícia do regime ditatorial, ao ponto que sua família foi obrigada a se livrar de quase todos os seus pertences e documentos. Casou-se em Ilhéus com Elisabeth Veloso e produziu fontes de dados e trabalhos fundamentais para a compreensão da sociedade cacaueira do sul da Bahia.

Destoante das obras de sua época, Clóvis destaca a presença indígena na região, tal como o violento processo de espoliação de suas populações e terras. Confere aos rios Cachoeira, Itaípe, Almada e Pardo papéis condutores dos processos de barbárie e civilização no momento canavieiro e cacaueiro da região, acentuando, mais uma vez, que as comunidades fixadas no entorno dessas correntes terão o sangue marcadamente indígena. O teor do protagonismo dos povos originários, como os Aimorés e Tupiniquins, na resistência ao prosperar da lavoura canavieira e do próprio sucesso da capitania de Ilhéus, é um elemento incomum para a produção intelectual da época, e o resgate desta memória por Caldeira se deve essencialmente ao seu cuidado com o uso de fontes primárias, citadas exemplarmente em suas obras. Habitualmente contratado para prestar um serviço a um órgão censitário e analítico como o IGBE, seus livros dificilmente contarão trajetórias para favorecer determinados grupos e sujeitar outros como era comum das obras não-ficcionais do período. Além disso, se atinha fortemente à interpretação sob as categorias de análise marxistas, se utilizando de termos como “capital trabalho”, “extração de mais-valia” e “inversão do capital” em seu texto. Nos trará a rara informação documentada sobre o trabalho escravo nas lavouras, e chamando atenção ao processo de exploração de mão-de-obra recém-liberta vinda da região metropolitana, aos quais se pagava indignamente e mantinha em condições de vida e trabalho análogas à escravidão no período cacaueiro. Estes novos trabalhadores livres também se inseriam na região para cultivar em pequena propriedade, ao que eram frequentes alvos do “caxixe”, fraude torpe habitualmente praticada pelo médio e grande proprietário da lavoura. O expediente de exploração, espoliação e vilania estava posto na região, contrastando com as poderosas teorias do “trabalho duro” e meritocracia agrária.

Na verdade, demonstra a todo momento como a lavoura do cacau, ainda mais que a canavieira, se colocava como um negócio a render muito resultado com um mínimo de esforço. Acontece uma distorção, que também se projeta num comportamento social, no sentido tradicional da lógica agrícola. Se condicionou que o proprietário deveria permanecer isolado do empreendimento. Embora se admita que o fenômeno não aconteceu em regra geral, principalmente na pequena propriedade, onde se torna imprescindível a presença, a ausência do agricultor cacaueiro na própria lavoura se tornou emblemática à época. Embora fosse um fazendeiro, era um homem que pouco tinha a ver com o meio rural e pelo qual nutre certo desamor. As instalações da fazenda dificilmente terão algum investimento proveniente do vultoso lucro do cacau; até mesmo a própria sede é negligenciada. Sua presença só se concretizará quando for imperiosa na roça de cacau. Caldeira adiciona um elemento social e psicológico a esta repulsa, observando que os anos passados no campo em condições desfavoráveis quando comparados à civilização urbana tenham criado a vontade irremediável de sair do isolamento e desfrutar do conforto que a cidade confere. Mas não a sua cidade, propriamente, quando percebemos que embora o “dinheiro do cacau” tenha edificado Ilhéus e criado espaços importantes como a universidade e a CEPLAC, foi feito muito pouco perto do que era possível. O fenômeno se agrava a medida que o patrimônio das fazendas se integra às grandes casas exportadoras, por compra ou pagamento de dívidas. Outro problema se encontrará sobre a mão-de-obra, sobra a qual a lavoura cacaueira não se preocupou em educar ou sequer fixar. Não criou uma tradição da mão-de-obra, tudo se opunha à permanência do trabalhador. O período de “paradeiro”, somado à baixa diversificação das culturas, realizou grande impacto no esforço em reagrupar os trabalhadores dispersos ano a ano. Se pensarmos nos períodos de crise, que levaram o conhecimento de gerações inteiras como na que atravessamos, a dificuldade é significativa. Uma moderna indústria do cacau e do chocolate, em compassado crescimento hoje, poderia se apresentar como solução a este obstáculo que ainda se manifesta, se assentado sob o trabalho decente e um sistema de economia cooperativa.

O fenômeno absenteísta é muito conhecido, mas suas consequências pouco exploradas e questionadas. A decadência da civilização em Ilhéus não é fruto das pragas, mas da própria lógica da lavoura gestada por seus grandes proprietários e coronéis. Caldeira pontua com muita visão e perspectiva como o comportamento de toda sociedade cacaueira – no que também se inserem comerciantes, profissionais liberais e gestores – que embora possuidora e parte reprodutora de um rentável ciclo do capital, em se furtar de contribuir, consumir e fortalecer a dinâmica regional, em termos econômicos, estruturais e políticos, não favoreceu o crescimento de suas cidades, nas quais Ilhéus é icônica sob estes termos. Os gestores da Ilhéus republicana se assemelham muito entre si neste sentido, ao passo que mantém os níveis de desenvolvimento humano muito baixos nos acessos básicos como educação, saúde e mobilidade, enquanto grandes e médias empresas que circulam um grosso capital, seja através de concessões públicas ou instalações privadas, não contribuem ou contribuem muito pouco com a cidade. Em outros níveis, várias categorias profissionais mais abastadas, reforçam a evasão comercial e profissional na cidade, levando seus filhos para estudar em outras localidades, abastecendo-se em outro comércio e fomentando a especulação perene. Nas camadas populares, se apresenta na forma de uma memória muito recente de exploração e baixa assistência, da qual a nossa democracia na infância e as próprias relações abusivas, remanescentes da escravidão e esbulho para o povo negro e indígena, se desprendem em ritmo muito lento. O absenteísmo ainda se consagra como um comportamento latente, e embora Caldeira o tenha pontuado há mais de um século, nos é premente encará-lo enquanto comunidade e enquanto indivíduos responsáveis com nossa sociedade sul baiana. Parafraseando um pensador que pouco cito, como Nietzsche, mas que se faz necessário: “Falsos valores e palavras ilusórias: são estes os piores monstros para os mortais; longamente e à espera, dorme neles a fatalidade”.

Em honra da memória de meu bisavô Clóvis, pouco conhecida e obliterada pela repressão da tirania, que embora citado em inúmeros trabalhos científicos e históricos, não possui sua própria breve bibliografia.

Elisabeth Zorgetz é membro do Núcleo de História Econômica da Dependência Latinoamericana, militante do Partido Socialista Brasileiro e autora do livro “O Sétimo Rio”.

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Respostas de 3

  1. Parabéns Elisabeth. Um texto atualíssimo. A região dá sinais de mudança, mas em ritmo muito lento. O abesenteismo, conceito desenvolvido por seu avó, é ainda uma prática muto presente na atividade cacaueira. Precisamos debater mais sobre esse assunto…

  2. Gostaria de saber se Clóvis Caldeira é meu primo. Meus avós de Alagoinhas eram Claudiano de Sousa Caldeira e Otlia Villa Flor Caldeira.

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