O horror da escravidão fala alto em cada peça luxuosa do Palácio Imperial, pois foi produzido pelo chicote impiedoso sobre homens, mulheres, jovens e idosos a quem era negado o reconhecimento da condição humana por conta da cor de sua pele, dos traços de seus rostos, das características próprias de sua etnia.
Por Júlio Gomes.
Recentemente tivemos uma oportunidade fantástica do ponto de vista cultural e histórico: visitar o Museu Imperial, em Petrópolis, no interior do estado do Rio de Janeiro, no palácio que servira como Residência de Verão para Dom Pedro II e sua família por conta do clima sempre ameno proporcionado pela altitude da região serrana em que se localiza, permitindo-lhes fugir ao calor infernal da cidade do Rio de Janeiro.
Acompanhado de mais duas pessoas, uma delas bem mais jovem e curiosa, tive ocasião de acrescentar à visita meus saberes de graduado em História pela UESC e de professor desta mesma disciplina durante quase 30 anos, sem dúvida uma graça que Deus nos permitiu, mediante amparo de terceiros e esforço próprio, lograr alcançar.
Assim, durante a visita e por solicitação da jovem, fomos discorrendo humildemente, mas com entusiasmo e com a segurança de quem estudou de verdade, acerca do quanto solicitado: falamos dos costumes e limitações da época, que explica porque não há banheiros dentro do Palácio e de para que servia um pequeno móvel chamado criado-mudo, onde se guardava o penico ao lado da cama até poder esvaziá-lo pela manhã; falamos do fausto das roupas, sobretudo femininas, e de como elas se ligavam fortemente à condição de classe social, sexo e idade das pessoas, lembrando, por exemplo, que para as viúvas daquela época o luto pela morte do marido era eterno, perdurando até o fim da vida a obrigação de trajar-se de preto.
Quando entramos no pavilhão destinado aos veículos falamos acerca dos meios de transporte de então: charretes, liteiras para serem carregadas por escravos e a réplica da imponente carruagem imperial, feita para ser puxada por três parelhas de cavalos em uma forte demonstração visual de luxo e poder.
Mostramos as cenas de combate em telas pintadas a óleo onde é retratada a triste Guerra do Paraguai, em que para mim é possível identificar os combatentes pela farda e falar acerca de detalhes técnicos das armas da época, lembrando do injustificável prosseguimento da Guerra mesmos após a tomada da capital paraguaia, a cidade de Assunção; e da fuga de Solano Lopez, o Presidente e líder paraguaio, caçado até morrer em combate em Cerro Corá, perseguido sem motivo mesmo após o fim oficial dos combates pelo marido de Princesa Isabel, o ambicioso, militarista e ególatra Conde D’Eu.
E, sobretudo, acima de tudo, ao visitar o Museu Imperial não pude deixar de lembrar o tempo todo, em cada roupa, em cada peça do mobiliário, em cada costume de época, daqueles que eram responsáveis por produzir a riqueza que sustentava toda a elite, a economia e a estrutura da sociedade brasileira: nossos irmãos escravizados, os negros e também os indígenas, então reduzidos à terrível condição de simples objeto de uso e submetidos a todo o tipo mais degradante de violência e abuso.
O horror da escravidão fala alto em cada peça luxuosa do Palácio Imperial, pois foi produzido pelo chicote impiedoso sobre homens, mulheres, jovens e idosos a quem era negado o reconhecimento da condição humana por conta da cor de sua pele, dos traços de seus rostos, das características próprias de sua etnia.
Ouço em cada peça o grito dos escravizados, a violência extrema, o estupro, a mutilação, a negação e desagregação da família, o absoluto desrespeito à sexualidade das jovens a que estes irmãos em Cristo Jesus, filhos de Deus tanto quanto qualquer um de nós, se encontravam terrivelmente submetidos, em uma condição que se assemelhava a uma noite trevosa e sem fim: o degradante instituto jurídico e social da escravidão, que já então envergonhava o Brasil diante das demais nações do mundo Ocidental.
Por isso, ao término da visita, já saindo pelo portão do Palácio que dava acesso à rua, fui tomado de forte e quase incontida emoção ao ver, com sua família, uma linda criança negra, uma menina de apenas um ou dois anos, dando seus primeiros passos ainda vacilantes, que ali se encontrava bem vestida, limpa, bem tratada e bem acompanhada de seus amorosos parentes e, sobretudo, livre, livre para buscar um futuro melhor em um mundo mais justo, deixando a aviltante escravidão em um passado cada vez mais distante, porém sempre terrivelmente ingrato à memória.
Ante meu semblante que acabara de recordar a odiosa escravidão e agora contemplava a bênção da liberdade e do bem-estar material e afetivo expressos naquela linda criança negra, não tive opção senão afastar-me rapidamente, contendo a custo e disfarçando a agitação causada por todos estes sentimentos porque naquele momento, sob a mais profunda emoção, ninguém entenderia se furtiva lágrima incontida escorresse dos olhos de um velho professor.
Julio Cezar de Oliveira Gomes é graduado em História e em Direito pela UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Blog do Gusmão.
