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Novela da vida real: a Bahia e o inexplicável

Quando terminei de prestar o serviço militar obrigatório no Exército, mamãe decidiu sair do Rio de Janeiro, onde a vida de aventuras, bebedeiras, namoros e sumiços noturnos a que eu me afeiçoei começou a se mostrar bastante perigosa em uma cidade grande e violenta como aquela em que vivíamos. E quando ameacei querer entrar para a Polícia Militar do Rio de Janeiro – uma instituição onde as baixas por deserção, envolvimento com o crime e morte eram cada vez mais frequentes – minha mãe viu que soou o alarme para sairmos dali o mais rápido possível.

Por Julio Gomes.

Mamãe, sempre moderna e avançada para os padrões de sua época, permitia-me algumas coisas que não eram usuais nos anos 70 do século passado, quando tínhamos entre 5 e 15 anos de idade. Uma delas era fazer “vista grossa” e me permitir assistir, em 1973, aos episódios da “novela das dez” da noite, levada ao ar pela Rede Globo, direcionada para o público adulto e classificada pela censura oficial da ditadura militar como imprópria para menores de 16 anos. Eu tinha apenas cerca de oito anos, mas assistia da porta do quarto, meio escondido e muito atento.

Obviamente que bem pouco entendia acerca da trama de autoria de Dias Gomes que, adaptada para exibição na TV, foi um dos maiores sucessos da Rede Globo nos anos 70.

Recheada de duplo sentido para criticar a ditadura militar, a começar pela figura do corrupto e amoral Odorico Paraguaçu, Prefeito de Sucupira, que na novela seria um pequeno município do interior da Bahia, ali se desenrolavam ações cujo verdadeiro alcance nem em sonho eu poderia perceber, estando ainda na infância.

Mas tudo me fascinava! Eu e mamãe somos cariocas, e ainda morávamos na capital do estado do Rio de Janeiro. Tudo na novela me prendia: a maneira de agir e de falar dos personagens baianos; a presença do Prefeito Odorico embaraçando-se ousadamente com as três irmãs Cajazeiras ao mesmo tempo; sua filha retornada recentemente da cidade grande, na condição de mulher descasada, jovem e livre – um escândalo para aquela época! – e do cangaceiro Zeca Diabo, que queria que seu filho fosse cirurgião dentista enquanto o rapaz sonhava em ser cangaceiro como o pai. São simplesmente inesquecíveis!

A dose se repetiu em 1975, quando no mesmo horário foi exibida pela Globo a provocante e sensual Gabriela Cravo e Canela, desta vez adaptando o romance homônimo para a TV, ambientada em Ilhéus, novamente na Bahia. Impossível esquecer de Sonia Braga no papel principal, dos coronéis, dos jagunços, da Bahia imortalizada para o mundo inteiro por Jorge Amado!

Como se não bastassem as referências diretas da TV, as demais situações em que voluntariamente me metia também tinham, invariavelmente, algo de Bahia: era meu gosto pelo samba; era o prazer em olhar incansavelmente e depois – já adolescente – comparecer no terreiro de um Centro de umbanda que ficava exatamente em frente à nossa casa; eram as namoradas com um perfil baiano, quando não baianas de verdade.

A Bahia, sempre a Bahia!

Quando terminei de prestar o serviço militar obrigatório no Exército, mamãe decidiu sair do Rio de Janeiro, onde a vida de aventuras, bebedeiras, namoros e sumiços noturnos a que eu me afeiçoei começou a se mostrar bastante perigosa em uma cidade grande e violenta como aquela em que vivíamos. E quando ameacei querer entrar para a Polícia Militar do Rio de Janeiro – uma instituição onde as baixas por deserção, envolvimento com o crime e morte eram cada vez mais frequentes – minha mãe viu que soou o alarme para sairmos dali o mais rápido possível.

Havia duas opções: irmos para uma cidade do interior da Região Sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, Paraná ou Santa Catarina; ou para o interior da Bahia, lugares onde decerto tudo seria mais tranquilo. Fui consultado e adivinhe qual opção prevaleceu?

Bem, nosso destino, marcado por Deus e pelos deuses, era a Bahia. Mas esse já é um novo momento dessa trama, que passaria a ser mais rica, dramática e saborosa. Até o próximo capítulo desta novela da vida real.

Julio Cezar de Oliveira Gomes é graduado em História e em Direito pela UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Blog do Gusmão.

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