Como é lindo de se ver, no dia do desfile, o povo negro, pobre e excluído descendo do morro pelas vielas apertadas e tortuosas, maravilhosamente vestido de brilho, cetim e magia, com as fantasias dos destaques como príncipe ou rainha, com a roupa da Bateria, da Ala das Baianas, das passistas lindas e seminuas que apressadas se enrolam em algum pano para entrar em um automóvel e chegar até a Sapucaí com todo o requinte de sua cuidadosa produção feminina.
Por Julio Gomes.
Corria o início da década de 1980 e o Rio de Janeiro era tudo de bom. Nascido e criado naquela que um dia já foi de fato a Cidade Maravilhosa, a descoberta do Rio juntamente com os primeiros voos da adolescência era algo inigualável.
Estudava, sim, e com bastante dedicação. Mas isso não impedia em absolutamente nada as noitadas nos bailes funk do Mackenzie e do Renascença, nem a ida ao entorno do Maracanã para fazer exercícios, nem a presença nas maravilhosas praias da orla carioca sempre povoadas por mulheres ainda mais maravilhosas, nem as andanças sem fim solto pela cidade, que naquela época ainda não era tão violenta como veio a se tornar.
Entre as melhores coisas do Rio pairava, sem dúvida, a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, situada no bairro onde me criei e pelo qual ainda hoje tenho acesa paixão.
A quadra de ensaios e shows da Escola ficava não longe de minha casa e ali, com samba da melhor qualidade, arte popular, bebedeiras e amigos, o tempo parecia parar nas noites cheias de música, dança e alegria em que artistas como Dona Ivone Lara, Dicró, Leci Brandão, Zeca Pagodinho e Martinho da Vila reinavam absolutos.
Para além da frequência em todos os eventos e ensaios da escola de samba, que para pessoas da comunidade e que desfilavam no Sambódromo eram quase sempre com entrada gratuita, havia o prazer inigualável de desfilar todos os anos na Avenida Marquês de Sapucaí com as cores azul e branco, no êxtase de ser protagonista, ainda que em posição humilde, daquele que é o maior show da Terra.
Para quem não sabe, a preparação do desfile de uma escola de samba envolve um ano inteiro de expectativa e árduo trabalho, que se inicia quando acaba o desfile anterior e se estende por todo o ano seguinte com a escolha do tema a ser apresentado e do samba enredo, com a criação e construção das fantasias, dos adereços de mão, dos carros alegóricos e que vai se concretizando nos trabalhos do dia, entregues a profissionais; e nos ensaios das noites aos fins de semana, em que o clima de carnaval vai crescendo dentro de nós até explodir na Avenida.
Como é lindo de se ver, no dia do desfile, o povo negro, pobre e excluído descendo do morro pelas vielas apertadas e tortuosas, maravilhosamente vestido de brilho, cetim e magia, com as fantasias dos destaques como príncipe ou rainha, com a roupa da Bateria, da Ala das Baianas, das passistas lindas e seminuas que apressadas se enrolam em algum pano para entrar em um automóvel e chegar até a Sapucaí com todo o requinte de sua cuidadosa produção feminina.
Pouco importa se você é membro de alguma ala, se compõe a bateria ou se empurra um pesado carro alegórico: a alegria, a emoção está sempre presente, inesquecivelmente.
Foi em um desses desfiles que ocorreu um fato marcante: Como de costume, a bebida rolava solta, e a droga também. Mas este protagonista, que sempre se restringiu à cachaça, justamente na noite do Desfile, no espaço de espera para entrar na Avenida, abusou do álcool mais que o abuso normal, só que cachaça não é água não! Resultado: encostei em algum lugar, apaguei e só acordei bem depois, para ser informado de que a Unidos de Vila Isabel já havia entrado na Avenida e desfilado há horas atrás.
Instantaneamente curado da bebedeira, ainda muito jovem, compreendi que o tempo não volta atrás e que bebida é fonte de alegrias, mas também é fonte segura de problemas, de frustração e de grandes decepções.
Julio Cezar de Oliveira Gomes é graduado em História e em Direito pela UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Blog do Gusmão.
